11 de jul. de 2011

Caio Fernando Abreu






Caio Fernando Abreu (1948-1996) pertenceu à última geração de escritores brasileiros que realmente escreveu cartas. Dentro dela, foi quem mais fez de seu epistolário uma forma de arte, à qual ele se entregava com esmero cotidiano. Organizada por meu amigo Ítalo Moriconi, a coletânea Cartas (Editora Aeroplano, 2002), que só agora tive a oportunidade de ler, é um belo documento da trajetória de Caio, desde a adolescência, em Porto Alegre (Caio é natural de Santiago do Boqueirão, quase na fronteira com a Argentina), até a morte, em 1996, por complicações resultantes do vírus HIV. O encorpado livro, de mais de 500 páginas, reúne uma pequena parte da correspondência ativa de Caio com amigos de toda a vida, como os diretores de teatro Luiz Arthur Nunes e Luciano Alabarse, a pintora Maria Lídia Magliani, a escritora Hilda Hilst, que chegou a hospedar Caio em sua Casa do Sol, em Campinas, em 1969, na pior época da repressão militar, e a companheira de badalação noturna Jacqueline Cantore, com quem Caio chegou a morar no começo dos anos 80, em São Paulo. Também estão presentes como destinatários uma série de amigos mais recentes, cultivados durante a trajetória de Caio como jornalista em São Paulo: a cantora Adriana Calcanhotto, a que ele chamava de “Deusa”, Gerd Hilger, o tradutor alemão do romance Onde Andará Dulce Veiga? (1990), o escritor mineiro Luiz Fernando Emediato e o ator Marcos Breda, entre muitos outros.
Caio F. nunca viveu muito tempo no mesmo lugar. De Santiago do Boqueirão foi para Porto Alegre, daí para São Paulo (contratado pela Revista Veja), de lá para a casa de Hilda Hilst em Campinas, dali para o Rio, depois Paris, Estocolmo, Londres, de volta a São Paulo, Porto Alegre, Rio e assim sucessivamente. Nas longas temporadas que passou em São Paulo, ele alternou uma relação de amor e ódio com a cidade. Caio sentia falta de Porto Alegre. A capital gaúcha fica linda em abril, maio e Caio sentia falta dos plátanos da Redenção. Não era incomum que encomendasse plátanos (insistia que em SP não havia plátanos) e mate aos amigos gaúchos.
Caio F. é uma figura única na ficção brasileira: de sólida formação erudita, ele incorporou, como poucos, as referências pop ao seu texto. São constantes, nas cartas, os enxertos de canções: na época de Collor, ele escreve: “este país está se tornando um enorme barrados-no-baile”. Depois, com o sucesso das traduções de Os dragões não conhecem o paraíso (1988) e Onde Andará Dulce Veiga? na Europa, Caio ironiza: “Portanto, meu futuro parece ser mesmo o Nobel, lá pelo ano 2000, se não morrer antes de susto, de bala ou vício. Sendo que esta terceira opção naturalmente é a mais provável”. O primeiro enterro a que Caio comparece em toda a sua vida é o do amigo Cazuza. Na carta escrita logo depois à amiga M. L. Magliani, ele é implacável: “aquela gentalha em prantos, provavelmente porque o identificava como a bichinha aidética do barraco da frente. Bonito e terrível, no sentido brasileiro do termo. Ai, Brasil, Brasil, mostra a tua cara”.
As cartas de Caio confirmam a imagem já conhecida dos mais próximos: irônico, de língua ferina, ele era alucinadamente fiel aos amigos. Criava personagens—como “Marilene”–e misturava formas masculinas e femininas ao se referir a si mesmo. Apaixonava-se e se desiludia com uma velocidade estonteante, invariavelmente vivendo a dor de se interessar por homens heterossexuais (embora Caio raríssimas vezes tenha se definido como “homossexual”: ele preferia falar em sexualidade, independente do vetor). Nos últimos anos, ele parecia ir se reconciliando com ideia de que o amor definitivo não viria. “Acalmou a periquita”, como dizia ele. Logo em seguida, vivia uma outra paixão instantânea, que não frutificava, como a que teve pelo seu tradutor ao holandês, Sappe Grootendorst. Ao falar dele, revela-se de novo a face astrológica de Caio, que ele cultivou com enorme dedicação: “me apaixonei muito fundo. É difícil falar, nem quero. Um Capricórnio ascendente Leão, Lua em Scorpio. Holandês, calvinista. Uma Vênus em Aquário. Sinastrias heavys: meu Saturno no ascendente dele, grau exato; Saturno dele na quadratura do meu Sol (severas!). Sinastrias belas: Júpiter, Netuno e a Cabeça do Dragão dele na conjunção do meu Marte. O Marte dele no trígono exato de meu Plutão”. Caio era assim: a cada paixão, um minucioso mapa astral.
Caio lidou com a AIDS com a mesma intensidade e coragem que permearam toda a sua vida. Desde meados dos anos 80, começavam a chegar notícias de mortes de amigos. Além de Cazuza, foram muitos: os diretores de teatro Paulo Yutaka e Luiz Roberto Galizia, o dramaturgo Vicente Pereira, o cenógrafo e figurinista gaúcho Fernando Zimpeck, o autor Timochenko Wehbi e outros tantos, todos eles figuras com as quais Caio chegou a conviver. A partir de meados dos anos 80, começam os registros de sugestões a que Caio fizesse o que ele chamava de O TESTE. Só o faz em 1994, quando os constantes resfriados e a paulatina perda de peso pegam Caio no auge do seu sucesso internacional. Anuncia a notícia em três crônicas antológicas, publicadas n’O Estado de São Paulo com os títulos de Primeira, Segunda e Última “Carta para além dos Muros” (essas crônicas estão compiladas no livro Pequenas Epifanias).
Não há vacilação nem ambiguidade na resposta de Caio à AIDS. Já com a “periquita acalmada”, vivendo o reconhecimento internacional e, dizia ele, com pelo menos mais seis livros prontos dentro de si, Caio se lança furiosamente ao trabalho. Responde à hipocrisia da mídia com afirmações contundentes: “eu seria um idiota de estar com Aids e vir a público dizer que me arrependo de ter pecado contra os bons costumes que esta sociedade burguesa finge cultivar. NÃO ME ARREPENDO DE NADA, vivi minha vida exatamente como eu quis, não mudaria uma vírgula”.

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